A bola de sorvete
A bola de sorvete

A bola de Sorvete

Era um começo de tarde de um desses domingos em que o mundo parecia bocejar de monotonia e tédio, pela falta do que fazer em cidades pequenas ou médias. Recém-chegado ao município sede da comarca, começava a se inteirar de suas peculiaridades, hábitos locais e da personalidade de sua gente. Logo depois do almoço, a filha sugeriu fossem buscar sorvete. Referiu uma nova sorveteria na cidade, muito frequentada. Era um dos “points” da moçada e o sorvete, diziam, espetacular de bom. Era um dia quente de verão, o que tornava bem-vinda sugestão. Saíram, ele e a garota, rumo à tal famosa sorveteria do momento.

Lá chegando, deu para perceber que o local estava bem movimentado naquela tarde de domingo. Pacientemente, aguardou a vez de ser atendido. Solicitou ao jovem que atenciosamente o atendeu um isopor onde coubessem dez bolas de sorvete. Indicou três sabores, quatro de um, três dos outros dois. Enquanto o rapaz acomodava a iguaria na embalagem, a garota quis saborear um pouco do gelado ali mesmo. O pai, então, pediu ao moço uma casquinha e solicitou nela pusesse uma das dez bolas, deixando apenas nove no isopor. Lamento, mas não podemos vender uma bola só; o mínimo, na casquinha ou no potinho, são duas. Perdão, acho que você não me entendeu, retrucou calmo opai; não estou querendo uma bola separada, estou pedindo que coloque uma das dez que estou comprando na casquinha, para minha filha tomar agora. Lamento, senhor, não posso fazer isso; estamos proibidos de vender menos de duas bolas por casquinha. Pacientemente, repetiu: mas estou adquirindo dez bolas; quero levar nove no isopor e dar uma delas agora para a garota ir tomando a caminho de casa. Sinto muito, senhor, mas isso eu não posso fazer, são regras da casa. Já temendo alguma explosão paterna, a garota disse: deixa prá la, pai, vamos levar e eu tomo lá em casa. O pobre comprador de sorvete sentindo-se como se estivesse no meio de uma cena de filme de Fellini ou como se fosse personagem de um daqueles contos absurda e desconcertantemente engraçados de Pirandello, não concordou com a garota. Não, filha, isso é uma loucura, vou falar com o proprietário! Pediu ao rapaz para chamá-lo. Não vai adiantar senhor, a proibição partiu dele. Mesmo assim, chame-o, por favor. Veio o proprietário. Calmamente explicou-lhe o que estava acontecendo, reforçando que era um absurdo aquilo, pois não estava comprando uma bola de sorvete, mas dez bolas. Para seu espanto, o dono da sorveteria confirmou a impossibilidade de atendê-lo. São as regras da casa, senhor, não vendemos uma bola só na casquinha; o mínimo são duas. Se o senhor fosse dono de um estabelecimento comercial entenderia o direito de o proprietário estabelecer regras.  Ah! entendi, respondeu o freguês, aparentemente conformado. Pois, então, meu senhor, além das dez bolas de sorvete, vou levar também a casquinha vazia, quanto é? Uma casquinha só não é nada, fica como cortesia da casa. Pegou a casquinha e a embalagem de isopor como sorvete, foi ao caixa e fez o pagamento. Antes de sair, dirigiu-se ao rapaz que o atendera: você poderia emprestar-me um minutinho a colher de pegar sorvete? Um pouco surpreso, o rapaz assentiu e lhe passou a colher. Pachorrentamente, abriu o isopor, pegou uma bola de sorvete com o pegador emprestado, acomodou-a na casquinha e passou-a à menina, que não escondeu sua felicidade. Devolveu a colher e deixou o local, prometendo a si mesmo nunca mais voltar àquela sorveteria. Promessa que não conseguiu cumprir. O sorvete era realmente muito bom e a filha não abriu mão de voltar a degustá-lo.

Bem humorado, intitulando o episódio de “síndrome da bola de sorvete”, contou a história a vários amigos, mas ninguém acreditou. Conversa, você está inventando! Nem mesmo o testemunho da garota foi suficiente para que lhe dessem crédito. Dias depois, refletindo sobre o episódio, chegou à conclusão de que aquele sorveteiro não estava sozinho na sua lógica maluca; ela acomete boa parte da humanidade, incapaz de enxergar que regras abstratas devem ser flexibilizadas e adaptadas a situações concretas. Talvez esteja aí a origem do fanatismo e da intolerância: numa simples bola de sorvete. (limajb48@gmail.com)